Flores Mortas

   RACCOON CITY, SANDERS STREET
   24 de Setembro, 19:30

   O que era um depósito até alguns anos atrás não parecia ter nenhuma ligação com o que era hoje. Havia se transformado num ambiente limpo, tranquilo e vazio. O único cômodo ocupado era o antigo escritório, no segundo andar.  Era em formato de L, o piso frio coberto por um carpete azul marinho barato que combinava com as paredes brancas descascando. Na quina do L havia uma mesa metálica, de cerca de quatro metros de extensão. Sobre ela havia alguns papéis desorganizados, um rádio ao lado dum cinzeiro enferrujado, uma TV de 15’’ polegadas e uma Beretta M92FS ainda com o brasão dos S.T.A.R.S.. Os dois pentes extras encontravam-se na terceira gaveta, junto com duas caixas de munição e mais alguns aparatos que também lotavam todas as outras seis gavetas. Defronte à mesa, havia uma cadeira de couro caramelo, onde havia uma jaqueta jeans enroscada. Ela deveria estar junto às outras peças de roupas no cabide, ao lado da cama desarrumada, mas não havia espaço. Até a preciosa boina azul estava soterrada em meio a tanta roupa...

 

   “Fast-food de novo, nham nham”, disse a mulher ao adentrar no cômodo. Havia um copo plástico e um embrulho em suas mãos, de onde exalava um forte cheiro de fritura. Não parecia combinar, com certeza não. Era uma figura um tanto quanto esguia devido aos anos que passara, no mínimo, 4 horas na academia malhando. 

   Jogou o embrulho sobre a mesa e sentou-se na cadeira... Olhou para a parede, para o quadro de madeira onde dezenas de imagens e recortes estavam presos por tachinhas douradas. Algo chamou sua atenção de imediato...

 

   Raccoon Times – 22 de Setembro

   Raccoon City – Há aproximadamente 18:30 da noite passada, Shanna Williamson (14) foi surpreendida por um estranho no parque da Rua Birch no centro da cidade quando voltava do treino para casa. O homem veio de trás de uma cerca no parque e a derrubou de sua bicicleta antes de tentar agarrá-la. A jovem conseguiu sair de lá com alguns arranhões, e correu para a residência de Tom e Clara Atkin; Clara chamou as autoridades, que conduziram uma busca no parque, mas não acharam nenhum sinal do agressor.
   (...)
   De acordo com a garota, o homem pareceu ser um andante: suas roupas e cabelos estavam sujos, e cheirava mal, “um cheiro de fruta podre”. Ela disse que ele parecia estar bêbado, vacilando e caindo depois dela ter fugido.

   Piscou algumas vezes. Havia ouvido falar o nome da menina hoje, no bar. Ela havia dado entrada no hospital naquela manhã, estava se comportando de maneira “agressiva” após ter passado a tarde queimando em febre e tendo alucinações. Pelo o que conseguiu extrair do enfermeiro embriagado, ela havia atacado duas pessoas, inclusive o próprio enfermeiro no final de seu turno. Havia mordido seu pulso, arrancado um generoso pedaço de carne - mesmo com todas aquelas bandagens, isso não passara despercebido.
      “Ela estava louca, estava sim! Agitada demais desde às 10 horas da manhã! Ela só parou quando, enfim, conseguimos amarra-la na cama! (...) Cheirava mal e seus olhos estavam brancos, como se estivesse morta. Seus pais também foram mordidos e um vizinho também, se não me engano. Disse eles que a garota havia se queixado o dia inteiro, tendo alucinações. Sua temperatura também estava ‘muito’ elevada, segundo a mãe... Mas acho que era exagero, afinal, quando ela deu entrada no hospital, a temperatura era de 30° graus. Hipotermia, talvez? Mas isso não explica como, no final da tarde, ela chegou a ficar com 18° graus.  É impossível alguém ficar com essa temperatura e continuar vivo...”
    Lembrava-se perfeitamente de cada palavra, colocando-a, a cada reprise feita em sua cabeça, mais em alerta do que poderia estar. Isso era um sinal. Nada bom...
    E teve sua certeza logo após ter ligado o rádio.

   Agente Marshall, central solicitando apoio.
   Agente Marshall, central solicitando apoio.
   Agente Marshall, central solici...

   Desligou-o. Estava cansada daquilo. Não sabia por que não havia se livrado do rádio, porque se apegava tanto às recordações de seus dias de glória.
   O problema é que a única apegada não era somente ela...
   Sabia que a Corporação estava disposta a perdoar seus deslizes se colaborasse. Talvez até ganhasse uma promoção, um bom aumento. Sabia também que seria vangloriada tanto pelos novos agentes quanto pelos antigos e de quebra poderia abandonar seu esconderijo. Mas não o faria. Para quê se expor à algo perigosamente desconhecido?
    Jogou boa parte de seu peso para trás, fazendo a cadeira quase tombar. Equilibrou-se e fechou os olhos, permitindo-se, por uma fração de segundos, ser menos egoísta.
   Já havia lidado com aquelas coisas. Havia se dado bem, ao menos em comparação ao restante de sua equipe. Mesmo sendo a única mulher, sempre fora a mais centrada, a mais imparcial em relação a tudo que envolvesse seu trabalho.
   Pelo menos era assim até três anos atrás.
   Por que diabos deixava os fantasmas de seus parceiros a assombrarem?
   Sabia que havia feito a melhor escolha quando atirou no meio da testa de cada um deles.
   Oliver, Mitchell e Bailey.

    Além de serem os braços e pernas da Equipe Charlie, também eram o coração. Por algum motivo inexplicável o Wesker montado uma equipe contrária. Geralmente uma mulher era posta em cada equipe para equilibrar, acrescentar um pouco o sentimentalismo barato. Mas não era esse o caso. Talvez fosse esse motivo de serem uma equipe classe “C”.  Não podiam ser comparados à Equipe Beta, imagine então à Equipe Alfa.
   Principalmente por esse desequilíbrio, eram sempre designados à missões simples, que chegavam a serem bobas até. Tão bobas que faziam qualquer um se perguntar como não eram designados para resolver “intrigas” em creches. Amy já havia entrado em várias enrascadas por questionar ordens, mas sempre alguém vinha consolar.
    E a voz desse mesmo alguém preencheu o silêncio desconfortável do escritório-casa.
    Para a sua surpresa, ele não havia mudado nada nos últimos três anos. Continuava com os músculos bem distribuídos em seus quase dois metros de altura; os dentes brancos, à amostra no mesmo sorriso acolhedor de antes, destacavam-se na pele escura. E ele ainda cortava o cabelo bastante rente ao couro cabeludo...
   – Já desistiu? - disse ele, encostando-se à parede com os braços cruzados. 
   – Não é da minha conta, Lewis - rebateu, desviando o olhar para os papéis sobre a mesa.
   – Muita coisa nunca foi “da sua conta” e nem por isso te vi abandonar a causa - refletia, um tanto quanto nostálgico – sempre foi uma agente incrível.
    – Disse certo. “Fui”. Parei porque me deram como agradecimento a porra de uma carta com um “pedido” de afastamento.
   – Acha que só você sofreu por isso, Marshall?
    – Sofrer? Lewis, você foi promovido uma semana antes de enfiarem toda a equipe naquela missão de reconhecimento! E eu fui a única que voltou fora de um saco plástico. Então, por favor, não compare.
   – Eles eram meus amigos também.
   – Mas não foi você que apontou uma arma pra cabeça de cada um e puxou o gatilho - concluiu, postando-se em pé. Agora olhava fixamente para o homem à sua frente – saia daqui, por favor. 
    Sem dizer qualquer palavra que fosse ele se retirou. Já não havia aquele sorriso em seus lábios, já não havia esperança em seu olhar.  O único som que se fez presente foi o dos passos do tenente, seguido pelo estalo da porta.
    “Merda...”